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A arte de sobreviver à morte

Ainda bem que nosso cérebro é dotado de dois artifícios essenciais à sobrevivência: o medo e o esquecimento. Sem isso, impossível seguir em frente. Por razões óbvias, o temor nos protege de perigos, reais ou frutos de suposição. Por necessidade, deletamos da memória o que nos causa dor. Se assim não fosse, não haveria uma alma viva a passear pela Rambla de Barcelona, em um dia de feriado.

Há poucos dias de completar dois meses do atentado, que matou mais de uma dezena de pessoas e deixou uma centena de feridos, a rotina em um dos mais famosos cartões postais da capital da Catalunha segue como se por ali não houvesse existido qualquer rastro de morte.

Não há nenhum eco de choro ou dos berros de desespero. Só se ouvem sussurros eufóricos em diferentes idiomas; as risadas de quem desfruta de alguns dias de descanso; o deslizar apressado de malas despachadas de todos os cantos do mundo. De grito, só os que são resultado da exaltação de alguns catalães que, enrolados na bandeira da Catalunha, se reconhecem na luta pela independência.

No local onde o furgão parou depois de atropelar centenas de pessoas, está justamente o mosaico de Juan Miró colorindo o chão. Tantas cores que foram capazes de disfarçar os tons escuros deixados pelo atentado. Ali, dois policiais fazem a ronda. Não carregam na cara qualquer ar de preocupação a respeito de um novo ato insano. Estão como todos ali: seguem com tranquilidade do presente, que tem o dom de apagar o passado.

Não há qualquer homenagem aos que perderam a vida naquele lugar. Se havia restos de sangue, foram apagados pelo roçar dos sapatos que vão e vêm em busca de diversão. No exato ponto onde o carro foi largado, depois de descer desgovernado desde a Praça Catalunha, não há flores em memória de quem perdeu a vida atropelado. Os buquês exibidos ali custam 10 euros, cada, e foram feitos para impressionar os vivos.

Ambulantes seguem oferecendo aos viajantes os postais da Sagrada Família e os bonecos em miniatura do Messi. Uma bela vestida de Marilyn Monroe acena da sacada de um daqueles prédios, de onde se pode testemunhar perfeitamente o terror. Ela disputa a atenção com tantas atrações e convida o turista a conhecer o Museu do Sexo. O estrangeiro nem entra, mas devolve a saudação, tira foto e ri. Afinal, todos estão ali para serem entretidos pelas frivolidades. Estão de férias e pagaram para se divertirem a qualquer preço. Quem ousaria a falar de um atentado e lhes roubar a fantasia?

Como mecanismo de defesa, a sensação de pânico logo é esquecida. Por isso, a Rambla continua invadida pelos estereótipos: os chineses com seus paus de selfie; as asiáticas vestidas como bonecas, com roupas de qualidade e de gosto duvidosos; os de origem germânica com a cara rosada pela caminhada debaixo do sol, ainda persistente em outubro. Os grupos barulhentos de adolescentes mochileiros; os casais laçados pelas armadilhas feitas para turista, que desfrutam sangrias em jarros de um litro. Os pedintes que levam em uma mão uma latinha para as esmolas e na outra um romance de muitas páginas.

Bendita nossa mente que tem o poder de esquecer. O indiano que vende produtos da China em uma das lojas da Rambla leva alguns minutos para se recordar do episódio. Quando entende qual é o tema, explica que, diante de sua loja, morreram três pessoas: "um italiano, um chinês e uma criança". Com dificuldade para se expressar em castelhano, faz uma mímica para reproduzir a cena que viu naquele dia. A forma como descreveu, com gestos, o estado dos corpos, facilmente poderia ser confundida com uma tentativa de representar um dos personagens retratados na Guernica, de Picasso.

Quando relembra do atentado, o vendedor, que fugiu do país natal por causa "da poluição e da corrupção", conta que mais de 100 pessoas se esconderam em sua loja. De portas fechadas, todos tentavam se proteger de um terrorista de planos desconhecidos. Queriam viver. Nessa quinta-feira, sua loja mantinha as portas abertas, convidativa aos que permanecem vivos. Ninguém ali tinha mais medo e ele continuava tentando vender suas quinquilharias para quem quisesse levar para casa uma Barcelona made in China. Essa é a única lembrança que importa a seus clientes. Afinal, os mortos já tinham sido enterrados.

DICAS DE COZINHA

DA SARA!

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